Historicamente, foi em algumas das mais graves crises da humanidade que aconteceram as maiores evoluções em modelos de negócios, criação de novos produtos, curas e desenvolvimentos tecnológicos que pautam nossa vida até hoje. Das guerras mundiais à crise da Bolsa de 1929, passando pela econômica de 2008, muito foi inventado, reinventado e evoluído para elementos que fazem parte do nosso cotidiano atual, mesmo parecendo que elas sempre estiveram aqui.
Quer exemplos? Relógio de pulso, absorvente íntimo, chá em saquinho, zíper, antibióticos e comida enlatada foram alguns dos produtos que nasceram das necessidade/ oportunidades criadas pela Primeira e Segunda Guerra. Sem contar a evolução ou criação de negócios da nova economia a partir de um novo comportamento de consumo nascido pós crise imobiliária e bancária da última década, permitindo o nascimento de Airbnbs, Ubers, Nubanks e outros players alternativos a indústrias consolidadas e até então de concorrência inimaginável.
O maior problema para marcas, produtos e serviços diante de crises como essas – especialmente nos dias de hoje, onde notícias ruins circulam mais rápido que o vírus que está nos trancando em casa – é o senso equivocado e desenfreado de oportunismo. Para a maioria desses players, ganha-se mercado pontualmente – vide o aumento estratosférico do preço de álcool gel, entre outros artigos de necessidade básica, seja por fabricantes ou revendedores –, mas destrói-se reputação, relevância e confiança a médio prazo. E isso vale muito mais que qualquer margem esticada.
As palavras podem até ser parecidas – e durante um bom tempo quase irmãs nas estratégias de marketing. Mas, para quem trabalha na área, cuidado redobrado: atualmente, “oportunismo” é quase antagônico a “oportunidade” quando falamos de sucesso nos negócios.
Mas como aproveitar uma crise, como a atual do Coronavírus, para gerar valor de verdade, seja na reputação ou mesmo em faturamento, sem ser oportunista ou sanguessuga? Algumas marcas já conseguiram, em maior ou menor escala, baseando-se em três palavras que considero fundamentais para esse caso: Criatividade, pertinência e verdade.
O primeiro caso que apareceu pode parecer extremamente fútil, mas foi criativo e bem humorado a ponto de gerar não só exposição positiva para a marca, mas certa eficácia na necessidade do momento: manter as pessoas entretidas em casa. Um dos maiores portais de conteúdo adulto do mundo, o Pornhub liberou gratuitamente o acesso a seu conteúdo premium na Itália, bem no momento em que o país começou a enfrentar o pico de contaminação. A notícia acabou reforçando o comunicado aos italianos sobre a importância da quarentena, deixando governantes e usuários igualmente satisfeitos.
Num viés semelhante e menos dionisíaco, uma atitude extremamente feliz levou alguns dos principais jornais e canais do mundo a abrir seu conteúdo pago sem custo ao público, seja parcialmente – para notícias relacionadas ao Coronavírus – ou de forma integral. Após o New York Times iniciar o processo nos Estados Unidos, por aqui vimos Folha de S.Paulo, Estadão e O Globo derrubarem seus paywalls para matérias sobre o tema. Na TV por assinatura, canais como GloboNews, BandNews e CNN passaram a ser acessíveis mesmo para não-assinantes de pacotes especiais, apoiadas pelas operadoras Claro, Sky, Vivo e Oi TV.
Para facilitar o acesso, a Claro aumentou a banda de acesso ao seu serviço de internet para clientes e liberou a todos seu wi-fi disponível em lugares públicos desde o último sábado (14). Outras concorrentes seguiram os passos, até que a própria Anatel solicitou atuação em moldes semelhantes a todas as prestadoras brasileiras de telecomunicações. Disney, Globo, Band e outras programadoras também liberaram seus conteúdos para não-assinantes de TV paga temporariamente, assim como o GloboPlay no on demand, visando entreter – e, claro, conquistar – grande parte do público que ficará mais tempo em casa.
Criatividade, pertinência e/ou verdade
Bons exemplos (no amplo sentido da palavra) apareceram nessas primeiras semanas de pandemia diante do Coronavírus. Seria extremamente ingênuo considerar qualquer uma dessas ações como algo pensado apenas em prol da sociedade, sem viés de negócios ou ao menos recall positivo de marca. Mas se o objetivo das empresas é gerar lucro e conquistar clientes o tempo todo, talvez fazer isso oferecendo um benefício real (e neste momento crucial) ao público seja a forma mais louvável de fazer isso. E cada vez mais efetiva.
Abaixo listo algumas entre as que brotaram nos meus feeds nesse meio tempo, trazendo ao menos dois dos valores citados aí em cima:
Lush
Mundialmente conhecida como uma loja de… sabonetes, entre outros artigos de higiene pessoal focada no mercado de luxo, a Lush colocou cartazes em frente a algumas lojas da rede no Reino Unido com dicas sobre como lavar as mãos de maneira segura e efetiva. Mais do que isso, convida o público a entrar em suas lojas e lavá-la por lá gratuitamente, usando os produtos da marca e garantindo a higienização.
Mesmo sem citar em nenhum momento a palavra Coronavírus no processo, a ligação é óbvia e positiva aos olhares de quem participa da iniciativa.
Amazon
Atualmente a mais popular plataforma de e-commerce do mundo, a Amazon se viu obrigada a tomar diversas medidas especiais durante a epidemia. Duas delas, porém, repercutem positivamente em quem acompanha o assunto. A primeira é o controle iniciado pela companhia contra os espertinhos que abusam dos preços diante da alta procura de produtos específicos.
Além de se declarar “desapontada por maus atores tentarem aumentar artificialmente os preços dos produtos de primeira necessidade durante uma crise global de saúde”, ela excluiu dezenas de milhares de anúncios de vendedores que jogaram para as alturas valores de álcool gel e máscaras cirúrgicas. A segunda é o anúncio realizado nesta terça-feira (17) de que está interrompendo a entrega de produtos não essenciais até 5 de abril (para novos pedidos), focando-se principalmente no delivery de comida e medicamentos.
Woolworths
Como já longamente divulgado, a comunidade idosa é um dos principais grupos de risco para o Coronavírus. Porém, muitos deles são sozinhos e têm pouca intimidade com a tecnologia para fazer suas compras online. Pensando nisso, a rede de supermercados australiana Woolworths decidiu ter um momento só para eles, sem contato com outros públicos – diminuindo assim o risco de contágio. Entre as 7h e 8h da manhã, assim que as lojas abrem, apenas quem tem mais de 60 anos, comprovados por documento, podem entrar nas lojas para fazer compras.
LVMH
Controladora de algumas das principais marcas de luxo do mundo, como Louis Vuitton, Dior, Bvlgari, Tiffany e Chandon, a LVMH anunciou domingo (15) que está paralisando linhas de produção de perfumes e cosméticos para produzir produtos de higiene para as mãos, como álcool gel. A produção será doada ao governo e órgãos de saúda da França, seu país de origem, reforçando o estoque de produtos que já estão em falta por lá. Nesta terça (17), a Ambev anunciou medida semelhante, iniciando a produção de 500 mil unidades de garrafas PET com álcool gel, a ser doada para hospitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – onde há maior concentração de casos até o momento. A empresa aproveita sua própria matéria prima e logística para o processo.
Uma das grandes preocupações durante crises dessa magnitude é a saúde dos pequenos e médios comércios, que dependem de cada dia de faturamento para manter sua saúde financeira, funcionários e demais contas pagas. Tendo neles uma enorme fatia da receita, o Facebook deu início nesta semana a um projeto que doará US$ 100 milhões a pequenas empresas como um auxílio financeiro diante da nova realidade dos próximos meses. Segundo a COO (chief operating officer) da plataforma, Sheryl Sandberg, 30 mil estabelecimentos, oriundos de 30 países, vão receber o benefício para garantirem seus compromissos operacionais. Aqui, a página criada para oferecer informações e mostrar quem é elegível para a ação.
Burger King
Localmente, o Burger King Brasil – que controla a rede de mesmo nome e também a Popeyes – anunciou nesta segunda-feira (16) que destinará parte de sua receita da venda de todos os seus lanches até o fim deste mês ao SUS (Sistema Único de Saúde). A empresa declarou estar aberta a discutir com as autoridades para direcionar os recursos da melhor forma possível, tendo como objetivo a prevenção da disseminação do Coronavírus. Após o anúncio, a rede Espaço Laser, de estética, decidiu fazer o mesmo.
Ford
Engajada com questões sociais nos Estados Unidos, a Ford está retirando da mídia todas as suas mensagens focadas na venda de automóveis para colocar no lugar um comercial que oferece auxílio àqueles que estão pagando veículos da montadora em sistema de leasing. Produzido na semana passada em criação da Wieden+Kennedy Nova York, o comercial destaca a ligação da empresa com as necessidades americanas (inclusive produzir tanques e aviões durante a guerra) e destaca que “se você foi impactado pelo Covid-19 e está financiando um carro da Ford, estamos aqui para ajudar”.
Ao final, a assinatura tradicional “Built for Proud” (“Construído para orgulhar”, em tradução livre) está sendo trocada por “Built for Lend a Hand” (“Construído para dar uma Mão”) ou “Built for Right Now” (“Construído para o Agora mesmo”).
Mercado Livre
Diante de todas as indicações para diminuirmos o contato social e o toque, o Mercado Livre fez um upgrade temporário de seu logotipo, que mostra um aperto de mãos, pelo desenho de dois braços empunhados e um toque de cotovelos. Postada inicialmente nas redes sociais, a novidade traz a mensagem “Juntos. De mãos dadas ou não”, e acompanha uma página especial na plataforma oferecendo um compilado de produtos de higiene, informações sobre consumo responsável e respostas para dúvidas de consumidores sobre como receber entregas de forma saudável.
Na dúvida, evite
Fazer qualquer tipo de comunicação diante a temas polêmicos, mesmo sem qualquer ligação com o assunto, gera riscos que podem parecer estúpidos às pessoas de bom senso, mas que precisamos levar em conta diante de possíveis histerias coletivas. Cuidado excessivo ou não, dezenas de marcas não só estão adiando a comunicação de produtos e serviços, como estão tirando do ar campanhas mostrando comportamentos que se tornaram inadequados diante da pandemia – mesmo tendo sido executadas antes de qualquer contaminação.
A KFC tirou do ar um belo filme criado pela Mother Londres em que os consumidores apareciam lambendo os dedos após degustar os frangos da rede, ao som de “Nocturne”, de Chopin. “Não parece a melhor hora para veicular essa campanha, então decidimos interrompê-la por hora – mas estamos muito orgulhosas dela e ansiosos para trazê-la de volta mais tarde”, destacou um comunicado da empresa, uma vez que é indicado evitar qualquer contato das mãos com o rosto, assim como entre pessoas, durante o período. Por razões semelhantes, a Hershey’s pausou a campanha que mostra pessoas se abraçando e trocando barras de chocolate, colocando no lugar comerciais focados em produto e sem interação humana.
Por uma péssima gestão de mídia programática ou por má fé (nunca saberemos), a rede de varejo de moda Asos apanhou nas redes sociais ao patrocinar uma suposta máscara fashion em plena crise do Covid-19, lançada em agosto do ano passado, mas com os anúncios pipocando nas redes sociais na última semana, num combo de mau gosto. Já em caminho oposto, a marca de cerveja Coors Light correu para interromper a veiculação de um filme que, com bom humor, intitulava o produto como “A cerveja oficial do trabalho remoto”, em criação da DDB Chicago antes da crise. “A última coisa que queremos é que nossa comunicação pareça insensível ou seja mal interpretada”, ressaltou a CMO (chief marketing officer) Michelle St. Jacques, no momento em que home office se tornou quase artigo de necessidade, mesmo ainda sendo visto com desconfiança aos patrões mais… digamos… “old fashion”.
Para algumas marcas, não comunicar é o melhor a ser feito nesses momentos. Com todo mundo em casa, a Netflix ganhou toneladas em mídia espontânea, de memes a listas de conteúdos para serem assistidos durante a quarentena. Muito ativa em sua comunicação, inclusive em questões carrancudas como política, preferiu deixar a conversa fluir naturalmente e marcou um golaço, chegando a subir até em valor na bolsa de valores. Já a cerveja Corona, da AB InBev, foi fortemente impactada no início da crise por carregar o mesmo nome popularizado do vírus.
Por pesquisas de mercado, as vendas do rótulo chegaram a despencar 38% nas primeiras semanas, mas qualquer comunicação oficial só reforçaria uma inconsciente conexão entre os assuntos – por mais absurdo que possa parecer. A estratégia de ficar à espreita parece ter dado certo: em entrevistas recentes, os líderes da companhia afirmam que em vez de consolidar a queda, a cerveja fechou o ciclo de 4 semanas pós início da crise com um aumento de 5% em suas vendas, recuperando o espaço perdido.